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Cultura

01/04/2022 às 12h20 - atualizada em 05/04/2022 às 21h02

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Redação

Cotia / SP

Meu Irving preferido e o outro
Para Carlos R. Sanchez
Meu Irving preferido e o outro

Para evitar charadas, inicio dizendo que meu Irving preferido é  Washington Irving. Ensaísta nascido na segunda metade do século XVIII, seis anos após caírem as amarras dos treze estados com a declaração de independência dos estadunidenses; era ele garoto, com seis anos, quando em 1789 se dera a queda da Bastilha, ponto crucial da Revolução Francesa. O século em que nascera foi o século, em sua nação, de homens como Thomas Jefferson e Benjamin Franklin.


Mas antes, como que para sanar certa questão de ordem lógica – pois é certo que tendo em conta o entimema de um Irving preferido, é aceitável que ao menos me ocorra um Irving de que goste menos ou, como este que se tornará assunto*, que me cause sensações vertiginosas – gostaria de tratar de outro americano, o Irving preterido: Irving Wallace. Este autor de best-sellers nasceu em Chicago, Illinois, no ano de 1916, às vésperas da década de ouro da literatura estadunidense. Contudo, optou por não seguir os passos dos grandes nomes dessa época, como Ernest Hamingway, Fitzgerald, Thomas Wolfe  e T. S. Eliot; antes, se dedicou inteiramente ao imenso universo da subliteratura.


Lembro-me ainda do momento em que tive um de seus livros em mãos. Um velho colega de trabalho chegara à minha sala trazendo uma pilha de volumes que continha desde clássicos como Nada de novo no front, de Erich M. Remarque, até títulos como Os elefantes não se esquecem, de Agatha Christie, em pequenas e bem compostas edições, encadernadas em capa dura, publicadas pelo antigo Clube do Livro. Havia também algumas brochuras em capa branca, com títulos coloridos em letras garrafais nas lombadas, estas da editora Record. Entre elas, continha um título que provava ser esse velho colega um eclético muito corajoso: O elixir da longa vida, de Irving Wallace. Me entreguei a ele, instigado pela apresentação de meu colega, e devorei aquela massa disforme de palavras que custaram a ser digeridas.


Demora certo tempo, quando isto é feito sem o auxílio de um bom tutor, para filtrar, com base em nossas próprias experiências, o que presta e o que não presta. E, pasme o leitor, a primeira impressão que tive da prosa de Wallace foi péssima. Até hoje não pude compreender o que quer que possa significar “elixir da longa vida” para esse homem. Há toda uma tradição por traz da expressão, envolvendo até ciências místicas como a alquimia; e ainda que, de qualquer forma, o resultado fosse um livro de ficção-científica, há motivos para se esperar muito mais de um título desses. H. G. Wells escreveu ficção-científica e ainda é lembrado com respeito. F. Scott Fitzgerald e Kafka exalam ceticismo, e nem por isso são má literatura. Há algo no estilo de Wallace, no entanto, que o torna completamente vazio; e este problema de ordem estética se alastra para todas as camadas de sua obra como num processo metastático. É um romance cinzento, pálido, de timbre muito pobre. A voz de Wallace não tem poder de contar nada; como Patrick Süskind – e com este escritor alemão tem também em comum a síndrome de Fitzgerald, uma prosa sofrível ao se aventurar pelos roteiros de filmes – sua intenção é chocar, simplesmente chocar, ainda que isto custe uma prosa desproporcional, deixando em aberto temas de importância para o desenvolvimento da ficção, ao passo que expõe em mínimos detalhes cenas pueris, como as pornográficas.


Aliás, neste último assunto, Wallace é mestre, tendo escrito um livro – Os sete minutos – que influenciou o autor brasileiro Paulo Coelho em seu romance Onze Minutos. E a escola não para por aí: nomes como o de Dan Brown – influenciados por outras características da sua obra – infestam as prateleiras de livrarias e mercados, ganham adaptações para o cinema e vivem dessa simbiose de subliteratices.


Perdoe o leitor esse velho hábito de oferecer conselhos não requisitados. A experiência nos deixa ranzinzas, e, como quem oferece algo saudável em troca do que é nocivo à saúde, apresento-lhes “literatura” de verdade, pois nem tudo que tem tal nome de fato o é. Assim, os gregos também chamavam pharmakon tanto aos remédios como aos venenos.


**


Passemos agora ao remédio. Washington Irving, contemporâneo de figuras como Walt Whitman e Edgar Allan Poe, foi célebre prosador, tendo escrito tanto ficção quanto ensaio. Nova-iorquino, acompanhou o florescimento cultural de sua nação – nação que dera ao mundo homens como James F. Cooper e Emerson.


Quanto à decadente influência puritana que a austera comunidade protestante exerceu sobre a cultura americana, é possível ter-se ideia com base na produção da literatura feita de polêmica e sermões e, enquanto a tal atmosfera, há um interessante romance, muito bem documentado – segundo a crítica – por nome The Scarlet Letter, de Nathaniel Hawthorne. Mas há uma outra atmosfera, que é a de Washington Irving.


Rebuscado e, aparentemente, um homem de gosto, Irving é daqueles americanos cuja formação cultural fora quase que totalmente importada da Inglaterra. Isto se deu, obviamente, por meio de suas viagens ao exterior; mas, muito além disso, pelo seu amor à cultura anglo-saxã. Tal paixão pelas letras e ambientes ingleses é salientada pelo crítico Ainsworth R. Spofford. Não obstante a isso, há em sua obra um quê de novidade que só é possível sentir quando através da pena de homens que tiveram de inventar sua nação.


A princípio – e aí coloca-se um elemento que limita o acesso aos ensaios e contos de Irving – seu modo de escrever cadenciado, num ritmo totalmente desapressado, é seguido por uma aparência de pedantismo. Mas, não se engane o leitor, beletristas brilhantes de todo mundo, que pertenceram a épocas em que os homens eram educados lendo Cícero, Demóstenes e outros oradores, tendem a uma voz demasiadamente formal. São dificuldades que o tempo impõe a nós, preguiçosos, tão acostumados à linguagem coloquial. Isto, de forma alguma, torna Washington Irving obsoleto; quando muito, o torna menos lido, se comparado às bizarrices como as de Mark Manson e similares.


Edgar Allan Poe chama ao estilo tranquilo de Washington Irving, “repouso”. Mas creio que isto diga respeito apenas ao modo de tratar seus assuntos, porquanto estes pareçam mais belos sonhos que apenas repouso, de fato. Em A mutabilidade da literatura, podemos observar uma fusão entre os gêneros ensaio e conto – para ficar somente nos dois –, dado o tom quase polifônico que o texto parece assumir. A inserção de elementos fictícios num tipo de ensaio de ocasião – pois também era mestre no ensaio familiar – escrito em primeira pessoa faz lembrar a tão cultivada crônica aqui no Brasil. Washington Irving é elegante, além de reunir argúcia, gosto, e atenção aos detalhes. Sua crítica é tecida de forma tão sutil que mal percebemos quando o faz, distraídos que somos pela beleza do estilo.


No ensaio em questão, o narrador-personagem surpreende-se numa intrigante conversa com um livrinho que toma emprestado das imponentes estantes de carvalho trabalhado da Abadia de Westminster. E na vibrante troca de argumentos entre o volume e seu interlocutor, a prosa atinge o mais delicioso de seus momentos que, para terminar, reproduzo aqui, na bela tradução de Sarmento de Beires e José Duarte:


‘”Meu boníssimo amigo – exclamou o volume, bocejando melancolicamente no meu rosto – desculpai-me interromper-vos, mas noto que gostais de palestrar. Perguntar-vos-ia sobre o destino de um escritor que estava fazendo algum barulho, na ocasião em que me retirei do mundo. É verdade que sua reputação era considerada efêmera. A intelectualidade fechou-lhe as portas porque era um velhaco inculto, que pouco conhecia o latim e ignorava totalmente o grego, e foi obrigado a fugas sucessivas, por furtos de caça. Parece-me que seu nome era Shakespeare. Deverá ter logo caído no olvido, creio.”’


‘” Ao contrário – retruquei – graças exatamente a seu homem, a literatura da sua época tem resistido a uma duração superior ao termo ordinário da literatura inglesa. Surgem, de quando em vez, autores que parecem prova à mutabilidade da língua, porque enraízam-se nos princípios imutáveis da natureza humana. São como as árvores gigantescas que às vezes observamos às margens de um riacho. Estas, devido às raízes vastas e profundas que penetram através da superfície e agarram-se poderosamente nas verdadeiras fundações da terra, protegem o solo em derredor contra a erosão da corrente ininterrupta e sustém muitas plantas vizinhas e até algas desprezíveis, garantindo-lhes a perpetuidade. Este é o caso de Shakespeare,  a quem contemplamos desafiando a usurpação do tempo, conservando em uso moderno a língua e literatura dos seus dias e dando duração a muitos autores vagos, simplesmente por terem florescido na sua vizinhança. Mas também ele – pesara-me dizê-lo – vai aos poucos recebendo o estigma do tempo e a integridade de suas composições é atacada por uma profusão de comentadores, os quais, à semelhança de parasitas trepadeiras, quase sufocam a planta que os arrima.”’ 


 


Heber de Oliveira


Março de 2022


 


*  Entenda aqui “assunto” na sua concepção mais popular, tal como “assunto do dia” ou “assuntos do trabalho”, e não como assunto no sentido de ser elevado, coisa de que o ficcionista não é merecedor. 

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