17/02/2022 às 11h21 - atualizada em 17/02/2022 às 11h39
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Redação
Cotia / SP
Odes a Dioniso. Ou um “adeus à carne”*, é o que parece ter-se composto desde a época áurea do drama grego antigo até a ópera do século XIX – com exceção da austera música de Monteverdi. E digo isto tratando da essência e não do material.
Não seria difícil, se ignorássemos o teor do que se canta no palco, fecharmos os olhos e imaginarmos uma procissão de devotos enfeitados com grinaldas e borra de vinho no rosto, no caso de um Bizet; ou de um herói errante, severamente punido pelo destino, no caso de um Wagner. De olhos abertos, sabemos: muda-se o assunto, faz-se o mesmo em essência.
Desde Ésquilo**, o supremo êxtase, o gozo estético de que fala Nietzsche, e que só a música pode proporcionar, é o que se oferece ainda hoje por meio das grandes óperas***. Mas o desdém com que algumas pessoas se referem à grande música, chamando-a “música clássica”, ignorando diferenças cronológicas e estilísticas, mostra também certa incapacidade de ouvi-la como meio de purificação, como “alívio da alma pela satisfação de uma necessidade moral”. Abstrata demais para ser moral pelo material sonoro? Não. Nietzsche aprofundou, na época de Wagner, algo que, tirando uma ou outra excentricidade do filósofo alemão, já era bastante concebível para os amantes da música. E, de certa forma, remontava à doutrina do Ethos, ainda que mais simplória, com a qual os gregos olhavam para a sua mousiké.
É assim que ouço o Tuba Mirum de Mozart, em seu Requiem in D Minor, e é assim que ouço Maria Callas dando vida à Carmencita. É impossível não associar cada nota, cantada ou tocada, à figura extremamente complexa da cigana de Prosper Mérimée, ainda que com as singularidades do libreto. Figura que, como a de Mme. Bovary, eclipsou a de seu criador – em termos populares. Muita gente já ouviu, mesmo que algum trecho de uma ária, a ópera de Bizet. Suspeito, no entanto, que essa mesma parcela de ouvintes não tenha conhecido a figura enigmática da cigana de olhos oblíquos traçada pelo “Stendhal” do conto, Mérimée. É de uma beleza assustadora a narrativa; por vezes, mesmo, violenta e selvagem, como é de costume no mestre francês. Mas é atribuído a Georges Bizet tê-la tornado imortal.
Bizet compôs um hino ao riso, uma ode a Baco, ao popularizar de forma tão magistral o que até hoje é digno de tributo: falo do ballet de Rodion Shchedrin, apresentado pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo há alguns meses. Sem os trompetes, os coros, os solistas e a gama de cores da instrumentação operística, mas genialmente concebida, a adaptação para cordas e percussão foi estreada no palco do Teatro Bolshoi em 1967 e não deixou por desejar em momento algum, mantendo nos seus mínimos detalhes, o espírito de Carmen. Shchedrin mostrou-se um mestre em tal aspecto, se valendo de combinações timbrísticas escolhidas muito especificamente. As possibilidades adotadas para a percussão, geniais e não extravagantes, pois teriam de ser combinadas às das cordas, deram à peça um caráter de equilíbrio, sem sinal de desproporção do início ao fim.
A obra é totalmente baseada na ópera, o que não traz muitas surpresas, senão umas poucas que denotam o toque de um grande adaptador. E, a propósito, sendo “filtragem feita por um russo da obra de um francês sobre acontecimentos na Espanha” – tomo emprestadas as palavras de Arthur Nestrovski – não é estranho que nos surpreendamos a cada compasso de obra tão universal. Universal como são os ciganos – principalmente os de Mérimée que, com sua cor local fez de todos nós conhecedores dessas culturas, desses microcosmos. Universal como são os judeus, os europeus, os africanos, como somos nós, mistura de tantas raças.
Posso ainda ouvir os Vivas e Bravos da plateia em puro êxtase – para não perder o assunto introdutório – após o Finale sereno, precedido, durante a apresentação, pelos movimentos mais simétricos e proporcionais à música por parte do condutor Josep Pons. Seus golpes muito firmes, cortando o ar com a batuta, demonstraram absoluto domínio da peça. As palmas se estendem também a Mérimée por nos dar uma das personagens mais conhecidas da História, e a Bizet por brindá-la com sua fantástica ópera. Ainda existem dessas coisas em nossa cidade. Um sinal esperançoso de que nem toda sensibilidade nos foi roubada em meio a este século de escuridão.
Heber de Oliveira
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Notas
* No sentido religioso de Carnaval.
** No que as atuais reconstruções da música antiga, hipotéticas em parte, nos permitem supor.
*** Que se apresenta, vale lembrar, não que se compõe. E não é pretendido aqui registrar comentários que pareçam menosprezar a obra dos contemporâneos. Há, inclusive, uma série de excelentes trabalhos que temos tido a felicidade de prestigiar em estreia na Sala São Paulo, tanto de estrangeiros quanto de compositores nacionais. Nem denota saudosismo de minha parte a paixão pelas obras do passado. Talvez a preferência por uma arte que dispense explicações, que apenas nos dê o prazer de ouvi-las.
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Heber de Oliveira
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